Foto: Ismael Soares Realizar uma, duas, três… diversas ligações para saber o porquê estudantes do ensino médio e da Educação de Jovens e Adu...
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Foto: Ismael Soares |
Realizar uma, duas, três… diversas ligações para saber o porquê estudantes do ensino médio e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) deixaram de ir para as aulas e, ao mesmo tempo, tentar fazer com que retornem à escola. Tempos depois seguir com a missão de impactar a vida das pessoas por meio da Educação. Essa narrativa é um resumo da trajetória estudantil da cearense Gabrielly Domingos Sousa, 18 anos, que, depois de participar de ações de busca ativa na escola - para combater o abandono e a evasão escolar - foi aprovada no curso de Pedagogia em duas universidades públicas do Ceará.
Em 2024, quando cursava o 3º ano do ensino médio, etapa mais intensa da preparação para o ingresso na universidade, a Gabrielly conciliava os estudos com a missão de busca ativa escolar. Nessa iniciativa proposta pela escola, ela atuava 12 horas por semana. Boa parte do tempo, contou ela ao Diário do Nordeste, era fazendo contatos para que os alunos da instituição que eventualmente tivessem deixado de frequentar as aulas, voltassem.
No início do ano seguinte, a estudante que cursou tanto o ensino fundamental como o médio na rede pública, - sendo a maior parte do percurso em escolas de Fortaleza, - conquistou um dos grandes sonhos: entrar na universidade.
Ela foi aprovada tanto na Universidade Estadual do Ceará (Uece) quanto na Universidade Federal do Ceará (UFC), e optou pela segunda opção. Hoje, aluna do curso de Pedagogia e moradora do bairro Parangaba, Gabrielly quer seguir resgatando chances e fazendo do acesso à educação um percurso promissor a ser garantido a tantas outras crianças e jovens.
O Diário do Nordeste publica em 2025 a quarta edição do projeto Terra de Sabidos que neste ano tem como foco o “destino universidade”. O especial percorre Fortaleza e cidades do interior como Itarema, Ipueiras e Granjeiro, e conta experiências de egressos de escolas públicas do Ceará que acessaram a universidade, seja via Sistema de Seleção Unificada (Sisu) ou Programa Universidade para Todos (Prouni). As experiências apontam quão desafiantes, mas também recompensantes, têm sido as oportunidades que abrem portas e alteram a vida dos jovens e de quem os cerca.
Na vida escolar, a única série cursada em uma instituição particular foi o primeiro ano do Ensino Fundamental. Foi também nesse momento que uma experiência a marcou e segue repercutindo. “Só fiz o 1º ano do fundamental. Mas foi só isso. Eu tenho dois irmãos gêmeos e eles são autistas. São dois anos mais novos do que eu. Nessa escola era a primeira vez que eles entravam e eles sofreram preconceito. Minha mãe achou melhor tirar os três”, relata.
Daí em diante, o percurso foi todo da rede pública. Filha da costureira Gracileia Domingues Costa Sousa e do motorista Almir Maciel de Sousa - que tem ainda outras duas ocupações - , ela conta que na etapa que antecedeu o ensino médio, estudou nas escolas municipais Professor José Valdevino de Carvalho e na Waldemar Barroso. Nesta época, os pais de Gabrielly se separaram e a mãe partiu para o Maranhão com os três filhos. Ela estava na 7ª série do fundamental.
No 8º, morando em uma comunidade do município de Cândido Mendes, no Maranhão, veio a pandemia de Covid. E ela, assim como outros milhares de estudantes brasileiros, teve o aprendizado fortemente afetado. No 8º ano, conta, ela sequer teve aula, ainda que remota. Foi então que ela junto aos pais tomaram outra decisão determinante para o futuro: Gabrielly retornaria a Fortaleza.
Voltou aos 14 anos para morar com o pai, a madrasta e outro irmão mais novo. “Voltei e fiz o 9º ano no Waldemar Barroso. Foi bem difícil. Porque lá (no Maranhão) eu não tinha oportunidade de estudar. E quando eu voltei, passei dois anos sem ver minha mãe porque eu não tinha dinheiro para ir lá”, relembra.
No Ensino Médio, Gabrielly ingressou na Escola de Ensino Médio em Tempo Integral (EEMTI) João Mattos, no Montese. Lá, ela participou da transição da escola do regular para o tempo integral. “No início a escola não tinha estrutura ainda, e a adaptação também foi cansativa. A partir do segundo ano foi melhorando”, recorda.
Trajetória escolar
De aluna tímida e silenciosa à participante ativa e engajada em diversas atividades propostas pela escola. No começo do Ensino Médio, recorda a professora de Geografia e da disciplina Núcleo de Trabalho, Pesquisa e Práticas Sociais, Flávia Albuquerque, “Gaby era calada, na dela”. Depois, foi aproveitando cada oportunidade. “Foi um processo que eu me redescobri e desabrochei no tempo integral”, responde a estudante.
Foi líder de sala, participou do Grêmio Estudantil da escola e ingressou como bolsista em um processo de Busca Ativa Escola. No projeto, a estudante ganhava R$ 200,00 por mês. A seleção, destaca ela, “era por nota e tinha uma entrevista. Eu fiquei em 1º lugar e eram só cinco vagas”. Na busca ativa, ela voltava a atenção em parte para os adolescentes do tempo integral e parte para aqueles matriculados na EJA que a escola oferta à noite.
Sobre o abandono escolar, ela relata que “no EJA, quando a gente ia atrás as pessoas acabavam saindo porque tinham dificuldades e sentiam que ninguém ligava para eles. Tinha trabalho, precisavam cuidar de alguém doente, por isso não seguiam. Já no Ensino Médio, muito aluno deixava porque precisava trabalhar. E só de ter alguém ali sinalizando que se importava com eles, fazia eles pensarem sobre e alguns voltavam”, afirma.
“Eu já sabia que queria fazer faculdade. Via como um meio de mudar de vida, melhorar. Queria ajudar meu pai e minha mãe, porque ela sempre passou dificuldades, morando sozinha, tendo que criar meus irmãos que são autistas. No segundo ano eu ia fazer o Enem como treineira. Fui para a Academia Enem com um grupo de amigos. A gente pegava um ônibus e ía juntos. Na escola incentivaram muito para se inscrever no Enem e na Uece (Universidade Estadual do Ceará). E como eu era da busca ativa, ficamos responsáveis por fazer a inscrição de todo mundo na Uece e no Enem”.
Gabrielly Domingos Sousa
Universitária e egressa de escola pública
No currículo externo, Gabrielly ingressou em curso de línguas e durante o 2º e 3º ano participou do projeto Academia Enem, iniciativa da Prefeitura de Fortaleza que há mais de 10 anos prepara gratuitamente alunos para realizarem as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e de outros vestibulares.
Nessa rotina, estudava durante o dia, ia para as aulas de língua espanhola e nos sábados e domingos à tarde, seguia para os encontros da Academia Enem, no Ginásio Paulo Sarasate.
Dentre os cursos, indica que cogitou Letras, Biblioteconomia e Pedagogia foram cogitados. No segundo semestre do 3º ano, decidiu pela Pedagogia e passou tanto na Uece e na Universidade Federal do Ceará (UFC). Optou pela UFC e faz o curso diurno.
Alunos oriundos de realidades difíceis
Nenhum dos pais de Gabrielly cursou o ensino superior. Mas, ambos, destaca ela, “sempre acharam que a faculdade ajuda a mudar a realidade”, ainda que não soubesse sequer como eram as formas de ingresso.
Na EEMTI João Mattos, detalha Flávia Albuquerque, professora da unidade, essa realidade é compartilhada. A maioria das turmas, diz ele, “não quer faculdade fazer porque desconhece. Eles quando chegam aqui, chegam sem sonho. Aí quando começam a se envolver, eles acabam tentando. Mas, na nossa realidade, poucos 'querem' de cara. Temos alunos ainda com muita dificuldade de aprendizado”, relata.
Um diferencial da aluna Grabriely, recorda ela, era justamente o acompanhamento por parte do pai, o estímulo e o envolvimento para que ela pudesse ir adiante. Na EEMTI João Mattos, entre 2017 e 2024 - anos aos quais a Secretaria da Educação destaca que tem o levantamento sistemático - 62 estudantes foram aprovados no ensino superior. Nesse mesmo intervalo de tempo, a escola pública estadual com maior inserção de egressos na universidade, Escola Cesar Cals teve 1.982 alunos aprovados.
Na escola da qual Grabriely é egressa, a maioria dos estudantes é morador de bairros como Parangaba, Serrinha, Itaoca e Montese. Lá, afirma a professora, o peso de entrar na universidade é ainda maior e, por efeito, é motivo de muita comemoração, em um contexto, enfatiza ela, de “histórias bem desafiadoras”.
“Temos alunos que ainda passam fome, muito pobres. Vivem em realidades de violência muito forte, com parentes ameaçados, tendo que mudar de casa. E muitos com problemas psicológicos. Toda essa vivência externa acaba levando a isso”, destaca.
Processos na faculdade
Na UFC, no primeiro semestre de 2025, Gabrielly tentou aproveitar ao máximo os espaços da universidade e, embora o curso seja diurno, relata que ia para aula pela manhã, mas destinava às tarde a cursos de extensão e horas complementares.
“Eu achei o ambiente da Faculdade de Educação, a didática das aulas, tudo muito acolhedor. E me identifiquei mais ainda. Eu vi a importância de estar ali. Eu tô começando a ter afinidade na alfabetização de jovens e adultos e com a gestão escolar. Também já pensei em fazer pós em psicopedagogia”.
Gabrielly Domingos Sousa
Universitária e egressa de escola pública
No primeiro semestre, Gabrielly teve cinco disciplinas: História da Educação, Sociologia da Educação, Filosofia, Psicologia e Metodologia Científica.
“Cada uma trouxe coisas muito importantes. São várias facetas da educação. Eu, antes, não tinha um pensamento de como era ensinar, e com as aulas, eu fui mudando. Eu tinha pensamentos que não consideravam que cada pessoa tem o seu processo de aprendizagem e a faculdade tem me ajudado a ampliar essa visão”, completa.
Outro ponto que já a fez despertar foi o tema da educação inclusiva. Demanda fruto da própria experiência na qual o acesso digno dos irmãos à educação formal sempre foi comprometido.
“Meu projeto de pesquisa no ensino médio foi voltado para o Transtorno do Espectro Autista na escola. Eu pensava muito em educação inclusiva porque lembra muito meus irmãos. Eu quero que as pessoas tenham a educação que eles merecem ter. Meus irmãos vivem uma situação complicada porque lá não tem suporte”.
Da última vez que viu os irmãos gêmeos, no ano passado, destaca ela, um deles relatou que tinha muita vontade de aprender a ler e as atividades na escola desconsideravam isso. “Ele disse que eles eram tratados como limitados”. É também para reconstruir essas possibilidades que Gabrielly deseja “estar na educação”. Em um ciclo de descobertas, mudanças, crescimento, Gabrielly tem reiterado, a partir da própria vivência, que a educação é trajeto de expansão.
Da redação do Conexão Correio com diário do Nordeste
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